quinta-feira, janeiro 25, 2007

A Delicadeza do Reconhecimento


Two Gentle People

by Graham Greene

Tradução de Janilza Alencar da Silva

Eles estavam sentados em um banco no parque Monceau durante muito tempo, sem falar um com o outro . Era um dia de verão antecipado, com algumas nuvens brancas dando voltas no céu devido à brisa que soprava. A qualquer instante, o vento poderia chegar, as nuvens desapareceriam e o céu tornar-se-ia completamente azul, mas já era tarde: o sol teria se posto.
Para os jovens, esse devia ser dia propício para um encontro eventual - secreto, atrás da longa fileira de carrinhos, apenas com bebês e enfermeiras à vista. Mas ambos eram de meia-idade e nenhum deles tinha a ilusão de recuperar a juventude perdida, embora ele parecesse bem mais bonito do que acreditava ser, com seu bigode sedoso, ao estilo antigo, como uma medalha, recebido por bom comportamento, e ela era bem mais bela do que o espelho lhe havia mostrado. O pudor e a desilusão lhes davam algo em comum. Embora estivessem separados por pouco mais de um metro de metal verde, eles poderiam ser um casal que, com o passar do tempo, tinha ficado parecido. Pombos que lembram velhas bolas cinzentas de tênis passeavam despercebidamente aos seus pés. Ocasionalmente, um deles olhava para o relógio, embora nunca olhassem um para o outro. Para ambos, esse momento de solidão e paz era limitado.
O homem era alto e magro. Tinha o que se chamava de ar sensível e esse clichê combinava bem com ele. Seu rosto era tranqüilo, embora belo, banal: quando falasse não haveria surpresas desagradáveis porque um homem podia ser delicado, mas sem imaginação. Carregava consigo um guarda-chuva, o que demonstrava ser um homem cuidadoso. No caso dela, alguém de antemão notaria as longas e adoráveis pernas tão desprovidas de sensualidade quanto uma foto de família. Pela sua expressão, achava aquele dia de verão triste, porém relutava em obedecer às ordens do relógio e regressar para algum lugar, para seu mundo.
Eles jamais teriam conversado um com o outro se dois adolescentes malcriados não tivessem por ali passado. Um deles com o rádio sobre os ombros no último volume e o outro chutando os absortos pombos. Um de seus chutes acertou um pombo, mas eles seguiram, deixando-o desnorteado no chão.
O homem levantou-se, agarrando seu guarda-chuva como um relho.
- Jovens miseráveis - ele exclamou, e a frase parecia mais eduardiana, devido à leve entonação americana, da qual certamente Henry James já devia ter feito uso.
- Pobre pombo, - a mulher falou. O pombo debatia-se com dificuldade no cascalho, espalhando os pedregulhos. Uma asa pendia solta e a perna devia ter sido quebrada também, mas o pombo girava impossibilitado de se levantar. Os outros afastaram-se desinteressados, procurando no chão por migalhas.
- Caso a senhora pudesse virar o rosto um minuto – disse o homem. Ele repousou seu guarda-chuva e caminhou rapidamente em direção à ave, onde esta se debatia; depois, pegou o pássaro e rapidamente, com maestria, torceu-lhe o pescoço: era um tipo de habilidade que qualquer pessoa de berço deveria possuir. Procurou uma lata de lixo na qual cautelosamente depositou a ave morta.
- Não havia mais nada a ser feito, - ele comentou desculpando-se quando retornou.
- Eu particularmente não conseguiria ter feito isso, - a mulher disse, usando a gramática cuidadosamente no outro idioma.
- Tirar a vida é nosso privilégio - ele respondeu com ironia mais do que com orgulho. Quando sentou-se, a distância entre ambos tinha diminuído; eles podiam falar abertamente sobre o tempo e o primeiro dia de sol do verão. A última semana foi excepcionalmente fria e mesmo hoje... Ele admirava a forma como ela falava inglês e desculpou-se por se expressar mal em francês, mas lhe assegurou: não é um dom natural. Ela havia estudado na escola de Margate.
- É um balneário, não é?
- O mar sempre parecia tão cinzento - ela lhe disse, e por algum momento, permaneceram em silêncio. Depois, talvez pensando no pombo morto, perguntou se havia servido o exército.
- Não, eu tinha mais de 40 anos quando a guerra eclodiu - ele disse. - Servi numa missão governamental na Índia. Eu tenho um carinho especial por aquele país. - Ele começou a descrevê-la: Agra, Lucknow, a antiga cidade de Déli... seus olhos se iluminaram com as lembranças. Ele não gostava da Déli dos dias de hoje, construída pelos ingleses. O Lut..., Lut..., Lut. Não importa o nome. Déli o fazia lembrar de Washington.
- Então, o senhor não gosta de Washington?
- Para dizer a verdade - ele disse - não sou muito feliz no meu próprio país. Como pode ver, gosto de lugares mais antigos. Me sinto mais em casa. Dá para acreditar nisso? Até mesmo na Índia com os ingleses. Mas aqui na França sinto a mesma coisa. Meu avô foi cônsul Britânico em Nice.
- O Promenade des Anglais era muito novo ainda - ela disse.
- Sim, mas ele envelheceu. O que nós americanos construímos nunca envelhece com beleza. O edifício Chrysler, hotel Hilton...
- O senhor é casado? - ela perguntou.
Ele hesitou por algum momento antes de responder:
- Sou – disse, embora quisesse ser bem preciso. Ele esticou as mãos e procurou o guarda-chuva, o que deu-lhe confiança nessa situação constrangedora de conversar abertamente com uma estranha.
- Não devia ter feito a pergunta - ela disse, ainda cautelosa com sua gramática.
- Por que não? - Questionou-a sem graça.
- Estava interessada no que estava falando. - Ela lhe deu um pequeno sorriso. - A pergunta foi feita. Foi um imprévu.
- A senhora é casada? - Ele perguntou, mas apenas para fazê-la se sentir à vontade, pois podia ver seu anel.
- Sim.
Nessa hora eles pareceram entender bastante sobre a condição do outro e ele achou grosseiro esconder a identidade.
- Meu nome é Greaves, disse. - Henry C. Greaves.
- E o meu é Marie Claire. Marie Claire Duval.
- Bela tarde, não? - disse o homem chamado Greaves.
- Mas esfria um pouco quando o sol cai.
Novamente eles fugiram um do outro com pesar.
- Que guarda-chuva bonito o senhor tem, ela disse, e era bem verdade. A faixa dourada era visível, e até mesmo a alguns metros de distância podia-se ver que havia um monograma gravado nela: certamente um H, talvez entrelaçado por um C ou G.
- Foi um presente, ele disse sem prazer.
- Admirei muita a forma como o senhor agiu com o pombo. Como sou uma lâche!
- Tenho quase certeza que isso não é verdade - disse gentilmente.
- Ah, é verdade. Sou sim.
- Apenas no sentido de que todos nós somos covardes sobre alguma coisa.
- Não, não é - ela disse, lembrando do pássaro com gratidão.
- Ah, ele respondeu - eu sou em uma parte inteira da minha vida.
Ele pareceu estar à beira de uma revelação pessoal, mas ela agarrou na beira de seu paletó para que voltasse a si, ela literalmente segurou com esse intuito e, ao suspender a beira do paletó exclamou:
- O senhor encostou-se a alguma tinta fresca.
A astúcia teve êxito, ele fez o mesmo questionamento sobre seu vestido, mas examinando o banco, ambos concordaram que a tinta não era de lá.
- Eles estão pintando minha escada, ele disse:
- A senhora tem casa aqui?
- Não, um apartamento no quarto andar.
- Com um ascenseur?
- Infelizmente não - ele disse lamentando-se. É uma casa antiga no dix-septième. A porta fechada de sua vida havia aberto uma fresta e ela queria dar algo dela mesma em troca, mas não muito. Uma brecha causaria vertigem.
- Meu apartamento é deprimentemente novo. Fica no huitième. A porta é automática. Como no aeroporto.
Uma onda de revelação os movia. Ele ficou sabendo como ela sempre comprava seus queijos na praça de Madeleine: era quase uma expedição de sua casa no huitème até a Avenida George V, e uma vez ela tinha sido recompensada ao encontrar Tante Yvonne, a esposa do general, em seu trajeto ao escolher Brie. Ele, por outro, lado comprava seus queijos na rua do Tocqueville, na esquina de seu apartamento.
- O senhor mesmo?
- É, eu faço as compras, ele disse em uma voz inesperada.
- Está um pouco frio agora. Acho que devemos ir, ela disse.
- A senhora vem freqüentemente ao parque?
- Essa é a primeira vez.
- Que coincidência estranha, ele disse - essa é minha primeira vez também. Ainda que eu more perto daqui.
- Eu moro um pouco longe.
Eles se entreolharam com certa admiração consciente da vontade divina. - Estaria livre para um simples jantar comigo? Ele perguntou.
A excitação fez com que ela mudasse para francês. - Je suis libre, mais vous... votre femme…?
- Ela está jantando em outro lugar, ele disse. - E seu marido?
- Ele não retornará antes das onze horas.
Sugeriu a Brasserie Lorraine, que ficava apenas alguns minutos de lá, e ela ficou feliz por ele não haver escolhido algo chique ou demais sofisticado. A pesada atmosfera bourgeois da Brasserie deu a ela confiança e embora tivesse pouca fome, estava feliz em confortavelmente observá-lo avançar sobre o batalhão de chucrute no carrinho . O cardápio era extenso o suficiente, dando assim tempo para readaptarem a intimidade assustadora de jantarem juntos. Quando o pedido foi feito, ambos começaram a falar ao mesmo tempo.
- Eu nunca achei...
- É engraçada a forma como as coisas acontecem, ele acrescentou colocando uma pedra sobre a conversa.
- Conte sobre seu avô, o cônsul.
- Nunca o conheci, ele disse. Era mais difícil conversar no sofá de um restaurante do que no banco de um parque.
- Por que seu pai foi para os Estados Unidos?
- Talvez espírito de aventura, ele disse. - Suponho que foi o espírito de aventura que me trouxe de volta à Europa. A América não significava Coca-Cola e Life Time quando meu pai era jovem.
- E o senhor encontrou aventuras? Que pergunta estúpida de se fazer. Claro, o senhor se casou aqui?
- Trouxe minha esposa comigo, ele disse. - Pobre Paciência.
- Pobre por quê?
- Ela gosta de Coca-Cola.
- O senhor pode comprar aqui, ela disse. Dessa vez com uma tolice proposital.
- Claro.
O garçom veio e ele pediu um vinho Sancerre. - Está bom para a senhora?
- Conheço pouco sobre vinhos, ela disse.
- Pensei que todo francês...
- Deixamos esse assunto para nossos maridos, ela disse. Por sua vez ele sentiu uma estranha tristeza.
O sofá agora era compartilhado por um marido assim como por uma esposa, e por um instante o sole meuniére dava-lhes a desculpa para não conversarem. Mas o silêncio não era uma fuga verdadeira. Se a mulher não tivesse encontrado coragem para falar, os dois fantasmas teriam se plantado no silêncio firmemente.
- O senhor tem filhos? ela perguntou.
- Não, a senhora tem?
- Não.
- O senhor se arrepende?
- Acho que alguém sempre se arrepende em não ter feito algo, ela disse.
- Ao menos, sinto feliz em ter ido ao parque Monceau hoje.
- Eu também.
O silêncio a seguir foi um silêncio agradável: os dois fantasmas foram embora e os deixaram em paz. Num determinado momento, seus dedos se tocaram no açucareiro (haviam pedido morango). Nenhum dos dois tinha vontade de mais pergunta, pareciam conhecer um ao outro, mais do que qualquer outra pessoa. Era como um casamento feliz; a etapa das descobertas haviam acabado, passaram pela fase dos ciúmes e agora estavam tranqüilos na meia idade. Os únicos inimigos eram o tempo e a morte, e o café era como um alerta à velhice. Depois disso era preciso deter a tristeza com conhaque, embora sem sucesso. Era como se tivessem experimentado uma vida em que se mede o tempo como a da borboleta: em horas
- Parece um agente funerário, ele comentou sobre o maître que passou
- Verdade, ela disse. Então ele pagou a conta e saíram. Era uma agonia terrível, eles eram muito delicados para agüentar muito tempo. Ele perguntou:
- Posso levá-la em casa?
- É melhor não. De fato não. O senhor mora tão perto.
- Poderíamos tomar outro aperitivo no terraço? Ele sugeriu com o coração meio triste.
- Não nos ajudaria em nada, ela disse. A noite estava perfeita. Tu es vraiment gentil. Ela percebeu bem tarde que havia usado "tu". Ela contava que o francês dele fosse ruim o suficiente para não perceber o deslize. Eles não trocaram endereço ou telefone, nenhum deles atreveram a sugerir isso: a oportunidade havia chegado muito tarde na vida de ambos. Ele parou um táxi para ela que por sua vez, foi embora através do arco iluminado, e ele seguiu lentamente para casa pela rua Jouffroy. O que é covardia para um jovem é sabedoria para os mais velhos, da mesma maneira alguém pode envergonhar-se de sabedoria.
Marie-Claire caminhou através da porta automática e pensou, como sempre fazia, nos aeroportos e saídas de emergência. No sexto andar se conduziu para dentro do apartamento. Uma pintura abstrata em um tom cruel de escarlate e amarelo ficava de frente à entrada e recebeu-a como uma estranha. Ela foi diretamente para seu aposento e o mais devagar possível, trancou a porta e sentou-se em sua cama de solteira. Através da parede podia ouvir a voz e o riso de seu marido. Imaginou quem estaria com ele aquela noite. – Toni ou François. François tinha pintado o quadro abstrato e Toni, que dançava balé, sempre alegava, principalmente diante de estranhos, ter posado para o falo de pedra de olhos pintado, que tinha um lugar de honra na sala de estar. Ela começou a se despir. Enquanto a voz da porta ao lado fazia suas peripécias, imagens do banco no parque Monceau e do carrinho de chucrute na Brasserie Lorraine apoderou-se dela. Se seu marido a tivesse ouvido entrar rapidamente começaria a agir: excitava-o saber que ela era uma testemunha. A voz dizia: "Pierre, Pierre", reprovadoramente. Pierre era um nome novo para ela. Ela abriu os dedos sobre a toalha da mesa para tirar os anéis e pensou no açucareiro para os morangos, mas ao som de gritarias e risinhos à porta ao lado o açucareiro se transformou no falo com olhos pintados. Ela colocou rolhinhas de cera no ouvido, fechou os olhos e pensou como as coisas seriam diferentes se 15 anos atrás tivesse sentado no banco do parque Monceau observando um homem matando um pombo piedosamente.
- Sinto perfume de mulher em você, Patience Greaves disse com satisfação, encostando-se em dois travesseiros. O travesseiro de cima estava furado com marcas de queimado de cigarro.
- Oh, não pode ser! - É sua imaginação querida.
- Você disse que estaria em casa às 10 horas.
- São 10:20 agora.
- Você estava na Rua Douai, não estava, em um desses bares procurando por uma fille.
- Sentei-me no Parque Monceau e depois jantei na Brasserie Lorraine. Posso-lhe dar seu remédio?
- Você quer que eu durma, assim não preciso ficar na expectativa de nada, não é mesmo? É isso, agora você já está muito velho para fazer duas vezes.
Com a água da carafe que estava sobre a mesa entre as duas camas de solteiro, ele misturou o remédio. Qualquer coisa que dissesse não estaria certo, quando Paciência estava de mal humor. Pobre Paciência, ele pensou segurando o remédio em direção ao rosto coroado com cachos vermelhos. Como ela tem saudade da América. Ela jamais acreditara que aqui, Coca Cola tem o mesmo gosto. Felizmente, essa não seria uma de suas piores noites, pois ela tomou o remédio sem reclamar e enquanto se sentava ao lado dela, lembrava-se do momento fora da brasserie e, por deslize, a certeza de que havia sido chamado de "tu".
- O que esta pensando? Paciência perguntou. - Você ainda está na Rua Douai?
- Estava só pensando que as coisas poderiam ter sido diferentes, ele disse.
Essa foi a maior reclamação que ele se tinha permitido fazer a respeito de sua condição de vida.

terça-feira, janeiro 16, 2007

Andando com Lobos


The Company of Wolves
by Angela Carter
Tradução de Robson Valadares
Uma única fera, e somente ela, uiva nos bosques à noite.
O lobo é a encarnação do carnívoro e é incrivelmente feroz e inteligente. Uma vez que tenha experimentado o gosto de carne humana nada mais servirá.
À noite, os olhos do lobo brilham como a chama de uma vela, amarelo avermelhada. O razão disso é que suas pupilas se dilatam na escuridão e refletem a luz de sua lanterna de volta para você: vermelhas como um sinal de perigo. Mas, quando os olhos de um lobo refletem apenas a luz da lua eles brilham com um tom de verde, frio e nada natural, de aspecto mineral e pungente. Se um viajante desavisado de repente avistar estes terríveis pontos luminosos costurados aos arbustos ele sabe que deve fugir, isto é, se já não estiver paralisado de medo.
Mas aqueles olhos são tudo o que conseguirá vislumbrar dos assassinos da floresta, à medida que eles se aglomeram ao redor do seu cheiro de carne, quando atravessa o bosque imprudentemente tarde da noite. Surgiram como sombras, aparições, membros cinzentos de uma congregação de pesadelos. Ouça! Seu longo e trêmulo uivo... uma ária de medo que se faz audível através da noite.
Seu canto é o som do sofrimento, da verdadeira carnificina, pela qual passará.
São o inverno e o frio os responsáveis, por não haver nada para os lobos comerem nesta região de montanhas e florestas. As cabras e ovelhas estão trancadas em estábulos, os cervos foram em busca das pastagens restantes nas encostas da parte sul, portanto, os lobos estão magros e famintos. Há tão pouca carne neles, que se poderia contar suas costelas através do pêlo esquálido, se lhe dessem tempo antes de atacá-lo. Aquelas mandíbulas salivantes, a língua pendente, a baba congelada nos queixos cinzentos - dentre todos os perigos da noite e da floresta, fantasmas, hobgoblins, ogros que grelham bebês, bruxas que cevam seus cativos para banquetes canibais – o lobo é o pior porque é o único que não pode dar ouvidos à razão.
Sempre se está em perigo na floresta, onde não há ninguém. Adentre os portais de grandes pinheiros onde longos galhos se entrelaçam ao seu redor, prendendo os viajantes incautos em redes como se a própria vegetação tramasse com os lobos que vivem ali. É como se essas árvores maldosas pescassem em benefício de seus amigos. Passe pelos umbrais com receio e precaução extremos, por que se você se desviar da trilha por um instante os lobos o comerão. Eles são tão terríveis quanto a fome e tão inclementes quanto uma praga.
As crianças de olhar grave das esparsas vilas da região sempre carregam facas, quando vão cuidar dos pequenos rebanhos de cabras, que fornecem leite acre e queijo bichado e rançoso à suas casas. Suas facas têm quase a metade de seu tamanho e suas lâminas são afiadas diariamente.
Mas os lobos têm maneiras de se aproximarem de nossos lares. Nós tentamos e tentamos, mas às vezes não podemos afastá-los. Não há noite de inverno em que os camponeses não temam encontrar um focinho magro, cinzento e faminto xeretando embaixo da porta. Houve uma vez em que uma mulher foi mordida em sua própria cozinha enquanto escorria macarrão.
Tema e fuja do lobo, pois, na pior das hipóteses, ele pode ser pior do que aparenta.
Houve uma vez um caçador, próximo daqui, que capturou um lobo em uma armadilha. Esse lobo havia massacrado cabras e ovelhas, comido um velho louco que vivia sozinho numa cabana a meio caminho subindo a montanha e cantava para Jesus o dia todo, atacado uma garota que tomava conta de ovelhas, mas ela fez tamanho rebuliço, que vieram homens trazendo rifles e o assustaram e tentaram rastreá-lo na floresta, mas ele era esperto e lhes passou a perna facilmente. Então esse caçador cavou um buraco, colocou um pato vivo como isca, e cobriu a armadilha com palha e esterco de lobo. Quá, quá! Fez o pato, e o lobo, enorme e pesado, veio se esgueirando da floresta, um lobo tão pesado quanto um homem adulto. A palha cedeu sob seu peso e dentro do buraco ele caiu. O caçador pulou atrás dele, rasgou sua garganta e cortou todas as suas patas a guisa de troféu.
E então o que jazia em frente do caçador não era um lobo, mas o corpo ensangüentado de um homem sem cabeça ou pés, agonizante, morto.
Em certa ocasião, uma bruxa da parte alta do vale transformou uma festa de casamento inteira em lobos porque o noivo havia escolhido outra para esposa. Ela costumava ordenar que eles a visitassem a noite, por rancor, e eles se sentavam e uivavam ao redor de sua cabana, fazendo de seu sofrimento uma serenata.
Há algum tempo, uma jovem de nossa vila casou-se com um homem que desapareceu completamente na noite de núpcias. A noiva estava deitada na cama arrumada com lençóis novos quando o noivo disse que iria sair para se aliviar. Ele insistiu nisso por decência e ela puxou a colcha até a altura de seu queixo e ficou deitada. E ela esperou, e esperou, e então esperou mais, será que ela esperou muito tempo? Até que ela pula da cama e grita ao ouvir um uivo trazido pelo vento, vindo da floresta.
Aquele uivo longo e trêmulo tinha, em toda sua terrível ressonância, uma tristeza própria, como se as feras desejassem ser menos brutais, se ao menos elas soubessem como, e nunca parassem de lamentar sua condição. Há uma melancolia no canto dos lobos. Uma melancolia infinita como a floresta, interminável como essas longas noites de inverno, e ainda assim aquela tristeza horrível, aquele lamento por seu próprio e irremediável apetite, nunca consegue comover, porque não sugere a possibilidade de redenção. O lobo não atingiria a misericórdia através de seu próprio desespero, somente através de um mediador, de maneira que, às vezes, a fera aparentará receber de bom grado a faca que o despacha.
O irmão da jovem vasculhou as dependências da fazenda e os montes de feno, mas nunca encontrou nem sinal dele, então a jovem enxugou os olhos e arranjou outro marido que não fosse tímido a ponto de urinar em um pinico e que passa as noites dentro de casa. Ela lhe deu duas lindas crianças e tudo ia às mil maravilhas até que, numa noite congelante, a noite do solstício, a noite mais longa, o gonzo do ano, quando as coisas não se encaixam como deveriam, seu primeiro marido voltou para casa.
Uma forte pancada na porta o anunciou quando ela estava mexendo a sopa para o pai de seus filhos. Ela o reconheceu no momento que levantou o trinco, apesar de se terem passado anos desde que ficara de luto por ele, e agora ele usava trapos e o longo cabelo, que chegava às costas, nunca vira um pente e estava cheio de piolhos.
__ Aqui estou de novo, senhora __ disse. __ Me dê um prato de repolho e rápido com isso.
Então o segundo marido entrou trazendo madeira para o fogo e o primeiro viu que ela dormira com outro homem e, pior ainda, pôs os olhos vermelhos nas criancinhas que surgiram na cozinha para ver o que era todo aquele barulho, ele gritou:
__ Desejo ser um lobo outra vez para ensinar esta prostituta uma lição!
Então em lobo ele se transformou instantaneamente e dilacerou o pé esquerdo do menino mais velho, antes de ser golpeado com o machado que usavam para cortar lenha. Mas, quando o lobo estava no chão, sangrando e dando seus últimos suspiros, seu pêlo desapareceu e ele ficou como era anos atrás, quando fugira de seu leito nupcial, de maneira que ela chorou e seu segundo marido a espancou.
Dizem que existe um ungüento dado pelo Diabo que transforma um homem em lobo no mesmo instante que ele o esfrega na pele. Ou, que seus pés saíram primeiro ao nascer e que seu pai era um lobo e seu tronco é de homem, mas suas pernas e genitais são de lobo. E que tem coração de lobo.
Um homem é lobisomem por sete anos, mas se suas roupas forem queimadas será condenado à esta forma licantrópica pelo resto da vida. Dessa forma, algumas das velhas esposas das redondezas imaginam estar protegidas se lançarem um chapéu ou um avental no lobisomem, como se as roupas os fizessem homens. Também pelos olhos, aqueles olhos fosforescentes, pode-se reconhecê-lo em qualquer forma. Apenas pelos olhos imutáveis pela metamorfose.
Antes de se tornar lobo, o licantropo se despe completamente. Portanto se avistar um homem nu entre os pinheiros da floresta, você deve correr come se o Diabo estivesse em seu encalço.
É inverno, e o tordo, o amigo do homem, pousa no cabo da pá do jardineiro e canta. Essa é a pior época do ano, pois é a em que se encontram mais lobos, mas esta menina decidida insiste que vai atravessar o bosque. Ela está quase certa de que as feras não podem causar-lhe mal, mas bem prevenida, coloca uma faca afiada na cesta que sua mãe encheu de queijos. Há uma garrafa de um forte licor de amoras, uma fornada de bolos de aveia assados na pedra da lareira e um pote ou dois de geléia. A garota levará esses deliciosos presentes para a solitária avó, que de tão velha esta sendo esmagada pelo peso dos anos. A vovó mora a duas horas de caminhada difícil através do gélido bosque. A menina se agasalha com seu grosso xale e o puxa cobrindo a cabeça. Ela calça seus resistentes tamancos de madeira. Esta vestida e pronta, e é noite de Natal. A maligna porta do solstício ainda oscila nos seus gonzos, mas a menina é amada demais para se amedrontar.
As crianças não se mantêm jovens por muito tempo neste país selvagem. Não há brinquedos com que brincar, de maneira que trabalham duro e se tornam sábias, mas não essa. Tão bela e caçula da família, uma pequena temporã, fora tratada com indulgência pela mãe e pela avó que lhe tricotara o xale vermelho que, hoje, tem a ominosa se não brilhante aparência de sangue na neve. Os seios apenas começaram a crescer, os cabelos são como seda, tão claros que dificilmente fazem sombra na pálida testa. As bochechas são de um simbólico vermelho e branco e acabara de começar seu sangramento de mulher, o relógio interno que vai bater, daqui em diante, uma vez ao mês.
Ela se move dentro do pentagrama invisível de sua própria virgindade. É um ovo que não se quebrou. Um recipiente selado. Trás dentro de si um lugar mágico cuja entrada está fortemente fechada por uma membrana. Ela é um sistema fechado. Não sabe se arrepiar. Carrega uma faca e não tem medo de nada.
Seu pai a teria proibido, se estivesse em casa, mas ele sempre está na floresta, juntando lenha, e sua mãe não sabe dizer não.
A floresta a envolveu como mandíbulas que se fecham.
Sempre há algo para se observar na floresta, mesmo no inverno: bandos desordenados de pássaros, que sucumbiram a letargia da estação, amontoados em galhos que rangem com seu peso, e tristes demais para cantar; os franzidos claros dos cogumelos da estação nos troncos manchados da árvores; os rastos cuneiformes dos coelhos e cervos; as marcas em ziguezague das pegadas dos pássaros; uma lebre tão magra quanto uma tira de bacon riscada na trilha, onde a escassa luz do sol salpica os moitas marrom-avermelhadas das últimas samambaias do ano.
Quando ela ouviu o uivo paralisante de um lobo ao longe, sua mão experiente agarrou rapidamente o cabo da faca, mas ela não viu nem sinal dele, nem de um homem nu. Então ela ouviu um barulho entre os arbustos secos e deles saltou para a trilha alguém totalmente vestido, um jovem muito bonito, de casaco verde e um vistoso chapéu de caçador, carregando as carcaças de algumas aves. Ela empunhou a faca ao primeiro ruído nos gravetos, mas ele riu com um lampejo de dentes brancos quando a viu e fez uma engraçada porém lisonjeira reverência. Nunca vira antes rapaz tão formoso, não entre os palhaços rústicos da sua vila. Então juntos eles partiram, através da obscurante luz da tarde.
Em pouco estavam rindo e brincando como velhos amigos. Quando ele se ofereceu para carregar a cesta, ela a entregou mesmo com a faca dentro porque ele disse que seu rifle os protegeria. À medida que escurecia, começou a nevar de novo. Ela sentiu os primeiros flocos se acumularem nos cílios, mas agora só faltava um quilômetro e haveria um fogo e chá quente e boas-vindas, certamente calorosas, para o atraente caçador e para ela também.
O jovem tinha um objeto notável no bolso. Era uma bússola. Ela olhou para o pequeno e redondo mostrador na palma de sua mão e observou a pequena agulha oscilante com vaga admiração. Ele afirmou que essa bússola o levara em segurança através do bosque na sua caçada, porque a agulha sempre dizia com exatidão onde estava o norte. Ela não acreditou, pois sabia que nunca deveria abandonar a trilha no seu caminho pelo bosque ou então se perderia instantaneamente. Ele riu dela outra vez e um leve traço de saliva brilhou em seus dentes. Disse que se se lançasse fora da trilha para a floresta que os rodeava, garantia chegar à casa de sua avó um bom quarto de hora antes dela, traçando o caminho através da vegetação rasteira com a bússola, enquanto ela caminha com dificuldade pela longa e sinuosa trilha.
__ Não acredito no senhor. Além do mais, o senhor não teme os lobos?
Ele bateu de leve na coronha do rifle e deu um sorriu largo.
__ É um desafio? __ perguntou. __ Vamos fazer uma aposta? O que você me dá se eu chegar primeiro à casa de sua avó?
__ De que você gostaria? __ perguntou sem ingenuidade.
__ De um beijo.
Trivialidades de uma sedução rústica: ela baixou os olhos e corou.
Ele seguiu pelo mato e levou a cesta consigo, mas ela se esqueceu do medo das feras, apesar da lua estar nascendo, pois queria demorar-se no caminho para ter certeza de que o belo cavalheiro iria ganhar a aposta.
A casa da avó fica a uma distância não muito grande da vila. A neve recém caída rodopiava ao sabor do vento na horta, e o jovem subia delicadamente a trilha nevada que levava à porta da cozinha, como se estivesse relutante em molhar os pés, balançando sua caça e a cesta e cantarolando uma canção.
Há um tênue vestígio de sangue no seu queixo, pois ele havia mordiscado a caça.
Bateu no vidro da porta com os nós dos dedos.
Velha e frágil, a avó já cedera três quartos à morte que a dor nos ossos lhe promete e está quase pronta para se entregar completamente. Há uma hora um garoto viera da vila para acender o fogo da lareira para a noite e a cozinha crepitava à luz das chamas. Ela tem a Bíblia como companhia, pois é uma senhora muito pia. Estava recostada a uma pilha de travesseiros na cama, encostada a parede à moda camponesa, enrolada na colcha de retalhos que fizera antes de se casar, há mais anos do que consegue se lembrar. Dois cães de porcelana, com manchas escuras no pêlo e narizes negros, estão sentados de ambos os lados da lareira. Há um tapete claro de retalhos trançados no piso de cerâmica. O relógio de coluna marca o evanescente tempo que lhe resta.
Vivendo bem, mantemos os lobos afastados.
Ele bateu no vidro da porta com os nós dos seus dedos peludos.
__ É sua netinha __ disse num tom agudo.
__ Levante o ferrolho e entre, minha querida.
Você o reconhece pelos olhos, olhos de predador, noturnos, olhos devastadores, vermelhos como uma ferida. Pode arremessar-lhe a Bíblia e o avental em seguida, vovó, a senhora pensou que isso era uma prevenção segura contra esses vermes infernais... agora chame por Cristo e sua mãe e por todos os anjos do céu para protegê-la, mas nada vai adiantar.
Seu focinho de fera é afiado como uma faca. Abandona a carga dourada de faisões roídos sobre a mesa e deixa a cesta da garota no chão, também.
__ Oh, meu Deus, o que você fez a ela?
Ele tira o disfarce, aquele casaco de tecido da cor da floresta e o chapéu com a pena espetada no laço. O cabelo emaranhado caia na camisa branca e ela vê os piolhos se movendo nele. Na lareira as achas se movem e chiam. A noite e a floresta entraram na cozinha com a escuridão emaranhada em seus cabelos.
Ele tira a camisa. Sua pele tinha a cor e a textura de um velo. Uma faixa de cabelo encaracolado desce pelo seu ventre, os mamilos maduros e escuros como um fruto venenoso, mas ele é tão esguio que se pode contar as costelas sob a pele se ao menos ele desse tempo para isso. Tira a calça e ela vê o quão peludas suas pernas são. A genitália, enorme. Ah! Enorme.
A última coisa que a velha senhora viu nesse mundo foi um jovem, de olhos como brasas, nu como uma pedra, se aproximando de sua cama.
O lobo é a encarnação do carnívoro.
Quando terminou com ela, lambeu os lábios e rapidamente se vestiu, até ficar exatamente como estava quando entrara pela porta. Queimou o cabelo dela na lareira e embrulhou os ossos num guardanapo que colocou debaixo da cama no baú de madeira em que encontrou uns lençóis limpos. Colocou-os cuidadosamente na cama ao invés dos denunciadores lençóis manchados que guardou no cesto de roupa suja. Afofou os travesseiros e sacudiu a colcha de retalhos, pegou a Bíblia do chão, fechou-a e colocou-a sobre a mesa. Tudo estava como antes, com exceção da avó que não estava mais lá. As achas se moviam na grade da lareira, o relógio tiquetaqueava e o jovem esperava pacientemente sentado, de maneira dissimulada na cama da vovó usando sua touca de dormir.
Toque, toque, toque.
__ Quem é? __ disse com a voz trêmula e aguda da avó.
__ É sua netinha.
Então ela entrou trazendo consigo um rasto de neve que se derreteu em lágrimas no chão de cerâmica, e talvez tenha ficado um pouco desapontada por ver somente sua avó sentada ao lado do fogo. Mas ele se desfez do cobertor e saltou para a porta, pressionando as costas contra ela de maneira que a garota não pudesse sair novamente.
Ela olhou ao seu redor e viu que não havia nem marca de sua cabeça na macia bochecha do travesseiro e como, pela primeira vez a via assim, a Bíblia estava fechada sobre a mesa. O tique-taque do relógio estalava como um chicote. Ela queria a faca que estava na cesta, mas não ousava tentar alcançá-la porque os olhos dele estavam fixos nela. Olhos enormes que agora pareciam brilhar com uma luz interior, única, do tamanho de pires, pires cheios de fogo do Tártaro, diabolicamente fosforescente.
__ Que olhos grandes você tem.
__ São para te ver melhor.
Nem sinal da velha mulher em lugar algum, exceto por um tufo de cabelo branco preso à casca de uma tora que ainda não se queimara. Quando a garota viu aquilo soube que estava em perigo de morte.
__ Onde está a vovó?
__ Não há ninguém aqui além de nós dois, querida.
Naquele instante um longo uivo se elevou ao seu redor, perto, tão perto quanto a horta, o uivo de uma multidão de lobos. Ela sabia que os piores lobos são os que são peludos por dentro e estremeceu, apesar de ter puxado o xale escarlate sobre si como se a fosse proteger, mesmo sendo vermelho como o sangue que iria derramar.
__ Quem veio nos cantar canções de Natal?
__ São as vozes dos meus irmãos, querida. Adoro andar com lobos. Olhe pela janela e os verá.
A neve quase obstruiu a gelosia e ela a abriu para ver o jardim. Era uma noite branca de lua e neve. A nevasca rodopiava ao redor das magras e cinzentas feras, sentadas entre as filas de repolhos do inverno, apontando os focinhos para a lua e uivando como se seus corações fossem explodir. Dez, vinte lobos. Tantos que ela não podia contar, uivando em concerto como se estivessem perturbados ou loucos. Seus olhos refletiam a luz da cozinha e brilhavam como uma centena de velas.
__ Está tão frio, coitadinhos __ disse. Não me admira que uivem tanto.
Fechou a janela para a canção fúnebre dos lobos e tirou o xale vermelho, da cor das papoulas, da cor do sacrifício, da cor do mênstruo e, uma vez que o medo não ajudara em nada, deixou de tê-lo.
__ O que devo fazer com o xale?
__ Jogue-o no fogo, querida. Você não precisará mais dele.
Ela embolou o xale e o arremessou na chama, que o consumiu num instante. Então tirou a blusa pela cabeça. Os pequenos seios brilharam como se a neve tivesse invadido o quarto.
__ O que devo fazer com a blusa?
__ No fogo também, querida.
A fina musselina ascendeu cintilante pela chaminé como um pássaro mágico e então da saia ela se desfez, das meias de lã, dos sapatos, e para o fogo todos foram, também, e para sempre. A luz do fogo brilhava acentuando sua silhueta. Agora estava vestida somente pelo intocado tegumento. Deslumbrante, nua, ela penteou o cabelo com os dedos. O cabelo parecia branco com a neve lá de fora. Então se dirigiu para o homem de olhos vermelhos em cuja desgrenhada cabeleira os piolhos se moviam. Ficou na ponta dos pés e desabotoou o colarinho de sua camisa.
__ Que braços grandes você tem!
__ São para melhor te abraçar.
Então, cada um dos lobos do mundo uivou uma marcha nupcial do lado de fora da janela, quando deu, de bom grado, o beijo que lhe devia.
__ Que dentes grandes você tem!
Ela percebeu a baba escorrer de sua mandíbula e como o quarto ficou cheio com o clamor dos Liebestod da floresta, mas, sagaz, não hesitou nem mesmo quando ele disse:
__ São para te comer melhor.
Ela caiu na gargalhada, pois sabia que não era carne de ninguém. Riu bem na cara dele. Arrancou a camisa por ele e a lançou ao fogo, com a fúria despertada por sua própria roupa jogada fora. As chamas dançavam como as almas dos mortos na noite de Walpurgis e os ossos sob a cama começaram a fazer um ruído ao qual ela não deu nenhuma atenção.
Para a encarnação do carnívoro, somente carne pura apetece.
Ela posará a cabeça em seu colo, catará os piolhos do seu pêlo e, talvez, os colocará na boca e os comerá, quando que ele lhe fizer a proposta, como ela faria numa selvagem cerimônia de casamento.
A nevasca acabará.
A nevasca acabou, deixando as montanhas cobertas de neve ao acaso, como se uma cega tivesse lançado um lençol sobre elas, e os galhos mais altos dos pinheiros cobertos de visgo, estalando, inchados sob o peso de sua queda.
Luz da neve, luz da lua, uma confusão de pegadas.
Tudo silêncio, tudo silêncio.
É meia-noite e o relógio bate. É Natal, o dia em que os lobisomens nascem, e a porta do solstício está aberta. Deixe que entrem por ela.
Veja! Ela dorme suave e sonoramente na cama da avó, entre as patas do carinhoso lobo.