quinta-feira, janeiro 25, 2007

A Delicadeza do Reconhecimento


Two Gentle People

by Graham Greene

Tradução de Janilza Alencar da Silva

Eles estavam sentados em um banco no parque Monceau durante muito tempo, sem falar um com o outro . Era um dia de verão antecipado, com algumas nuvens brancas dando voltas no céu devido à brisa que soprava. A qualquer instante, o vento poderia chegar, as nuvens desapareceriam e o céu tornar-se-ia completamente azul, mas já era tarde: o sol teria se posto.
Para os jovens, esse devia ser dia propício para um encontro eventual - secreto, atrás da longa fileira de carrinhos, apenas com bebês e enfermeiras à vista. Mas ambos eram de meia-idade e nenhum deles tinha a ilusão de recuperar a juventude perdida, embora ele parecesse bem mais bonito do que acreditava ser, com seu bigode sedoso, ao estilo antigo, como uma medalha, recebido por bom comportamento, e ela era bem mais bela do que o espelho lhe havia mostrado. O pudor e a desilusão lhes davam algo em comum. Embora estivessem separados por pouco mais de um metro de metal verde, eles poderiam ser um casal que, com o passar do tempo, tinha ficado parecido. Pombos que lembram velhas bolas cinzentas de tênis passeavam despercebidamente aos seus pés. Ocasionalmente, um deles olhava para o relógio, embora nunca olhassem um para o outro. Para ambos, esse momento de solidão e paz era limitado.
O homem era alto e magro. Tinha o que se chamava de ar sensível e esse clichê combinava bem com ele. Seu rosto era tranqüilo, embora belo, banal: quando falasse não haveria surpresas desagradáveis porque um homem podia ser delicado, mas sem imaginação. Carregava consigo um guarda-chuva, o que demonstrava ser um homem cuidadoso. No caso dela, alguém de antemão notaria as longas e adoráveis pernas tão desprovidas de sensualidade quanto uma foto de família. Pela sua expressão, achava aquele dia de verão triste, porém relutava em obedecer às ordens do relógio e regressar para algum lugar, para seu mundo.
Eles jamais teriam conversado um com o outro se dois adolescentes malcriados não tivessem por ali passado. Um deles com o rádio sobre os ombros no último volume e o outro chutando os absortos pombos. Um de seus chutes acertou um pombo, mas eles seguiram, deixando-o desnorteado no chão.
O homem levantou-se, agarrando seu guarda-chuva como um relho.
- Jovens miseráveis - ele exclamou, e a frase parecia mais eduardiana, devido à leve entonação americana, da qual certamente Henry James já devia ter feito uso.
- Pobre pombo, - a mulher falou. O pombo debatia-se com dificuldade no cascalho, espalhando os pedregulhos. Uma asa pendia solta e a perna devia ter sido quebrada também, mas o pombo girava impossibilitado de se levantar. Os outros afastaram-se desinteressados, procurando no chão por migalhas.
- Caso a senhora pudesse virar o rosto um minuto – disse o homem. Ele repousou seu guarda-chuva e caminhou rapidamente em direção à ave, onde esta se debatia; depois, pegou o pássaro e rapidamente, com maestria, torceu-lhe o pescoço: era um tipo de habilidade que qualquer pessoa de berço deveria possuir. Procurou uma lata de lixo na qual cautelosamente depositou a ave morta.
- Não havia mais nada a ser feito, - ele comentou desculpando-se quando retornou.
- Eu particularmente não conseguiria ter feito isso, - a mulher disse, usando a gramática cuidadosamente no outro idioma.
- Tirar a vida é nosso privilégio - ele respondeu com ironia mais do que com orgulho. Quando sentou-se, a distância entre ambos tinha diminuído; eles podiam falar abertamente sobre o tempo e o primeiro dia de sol do verão. A última semana foi excepcionalmente fria e mesmo hoje... Ele admirava a forma como ela falava inglês e desculpou-se por se expressar mal em francês, mas lhe assegurou: não é um dom natural. Ela havia estudado na escola de Margate.
- É um balneário, não é?
- O mar sempre parecia tão cinzento - ela lhe disse, e por algum momento, permaneceram em silêncio. Depois, talvez pensando no pombo morto, perguntou se havia servido o exército.
- Não, eu tinha mais de 40 anos quando a guerra eclodiu - ele disse. - Servi numa missão governamental na Índia. Eu tenho um carinho especial por aquele país. - Ele começou a descrevê-la: Agra, Lucknow, a antiga cidade de Déli... seus olhos se iluminaram com as lembranças. Ele não gostava da Déli dos dias de hoje, construída pelos ingleses. O Lut..., Lut..., Lut. Não importa o nome. Déli o fazia lembrar de Washington.
- Então, o senhor não gosta de Washington?
- Para dizer a verdade - ele disse - não sou muito feliz no meu próprio país. Como pode ver, gosto de lugares mais antigos. Me sinto mais em casa. Dá para acreditar nisso? Até mesmo na Índia com os ingleses. Mas aqui na França sinto a mesma coisa. Meu avô foi cônsul Britânico em Nice.
- O Promenade des Anglais era muito novo ainda - ela disse.
- Sim, mas ele envelheceu. O que nós americanos construímos nunca envelhece com beleza. O edifício Chrysler, hotel Hilton...
- O senhor é casado? - ela perguntou.
Ele hesitou por algum momento antes de responder:
- Sou – disse, embora quisesse ser bem preciso. Ele esticou as mãos e procurou o guarda-chuva, o que deu-lhe confiança nessa situação constrangedora de conversar abertamente com uma estranha.
- Não devia ter feito a pergunta - ela disse, ainda cautelosa com sua gramática.
- Por que não? - Questionou-a sem graça.
- Estava interessada no que estava falando. - Ela lhe deu um pequeno sorriso. - A pergunta foi feita. Foi um imprévu.
- A senhora é casada? - Ele perguntou, mas apenas para fazê-la se sentir à vontade, pois podia ver seu anel.
- Sim.
Nessa hora eles pareceram entender bastante sobre a condição do outro e ele achou grosseiro esconder a identidade.
- Meu nome é Greaves, disse. - Henry C. Greaves.
- E o meu é Marie Claire. Marie Claire Duval.
- Bela tarde, não? - disse o homem chamado Greaves.
- Mas esfria um pouco quando o sol cai.
Novamente eles fugiram um do outro com pesar.
- Que guarda-chuva bonito o senhor tem, ela disse, e era bem verdade. A faixa dourada era visível, e até mesmo a alguns metros de distância podia-se ver que havia um monograma gravado nela: certamente um H, talvez entrelaçado por um C ou G.
- Foi um presente, ele disse sem prazer.
- Admirei muita a forma como o senhor agiu com o pombo. Como sou uma lâche!
- Tenho quase certeza que isso não é verdade - disse gentilmente.
- Ah, é verdade. Sou sim.
- Apenas no sentido de que todos nós somos covardes sobre alguma coisa.
- Não, não é - ela disse, lembrando do pássaro com gratidão.
- Ah, ele respondeu - eu sou em uma parte inteira da minha vida.
Ele pareceu estar à beira de uma revelação pessoal, mas ela agarrou na beira de seu paletó para que voltasse a si, ela literalmente segurou com esse intuito e, ao suspender a beira do paletó exclamou:
- O senhor encostou-se a alguma tinta fresca.
A astúcia teve êxito, ele fez o mesmo questionamento sobre seu vestido, mas examinando o banco, ambos concordaram que a tinta não era de lá.
- Eles estão pintando minha escada, ele disse:
- A senhora tem casa aqui?
- Não, um apartamento no quarto andar.
- Com um ascenseur?
- Infelizmente não - ele disse lamentando-se. É uma casa antiga no dix-septième. A porta fechada de sua vida havia aberto uma fresta e ela queria dar algo dela mesma em troca, mas não muito. Uma brecha causaria vertigem.
- Meu apartamento é deprimentemente novo. Fica no huitième. A porta é automática. Como no aeroporto.
Uma onda de revelação os movia. Ele ficou sabendo como ela sempre comprava seus queijos na praça de Madeleine: era quase uma expedição de sua casa no huitème até a Avenida George V, e uma vez ela tinha sido recompensada ao encontrar Tante Yvonne, a esposa do general, em seu trajeto ao escolher Brie. Ele, por outro, lado comprava seus queijos na rua do Tocqueville, na esquina de seu apartamento.
- O senhor mesmo?
- É, eu faço as compras, ele disse em uma voz inesperada.
- Está um pouco frio agora. Acho que devemos ir, ela disse.
- A senhora vem freqüentemente ao parque?
- Essa é a primeira vez.
- Que coincidência estranha, ele disse - essa é minha primeira vez também. Ainda que eu more perto daqui.
- Eu moro um pouco longe.
Eles se entreolharam com certa admiração consciente da vontade divina. - Estaria livre para um simples jantar comigo? Ele perguntou.
A excitação fez com que ela mudasse para francês. - Je suis libre, mais vous... votre femme…?
- Ela está jantando em outro lugar, ele disse. - E seu marido?
- Ele não retornará antes das onze horas.
Sugeriu a Brasserie Lorraine, que ficava apenas alguns minutos de lá, e ela ficou feliz por ele não haver escolhido algo chique ou demais sofisticado. A pesada atmosfera bourgeois da Brasserie deu a ela confiança e embora tivesse pouca fome, estava feliz em confortavelmente observá-lo avançar sobre o batalhão de chucrute no carrinho . O cardápio era extenso o suficiente, dando assim tempo para readaptarem a intimidade assustadora de jantarem juntos. Quando o pedido foi feito, ambos começaram a falar ao mesmo tempo.
- Eu nunca achei...
- É engraçada a forma como as coisas acontecem, ele acrescentou colocando uma pedra sobre a conversa.
- Conte sobre seu avô, o cônsul.
- Nunca o conheci, ele disse. Era mais difícil conversar no sofá de um restaurante do que no banco de um parque.
- Por que seu pai foi para os Estados Unidos?
- Talvez espírito de aventura, ele disse. - Suponho que foi o espírito de aventura que me trouxe de volta à Europa. A América não significava Coca-Cola e Life Time quando meu pai era jovem.
- E o senhor encontrou aventuras? Que pergunta estúpida de se fazer. Claro, o senhor se casou aqui?
- Trouxe minha esposa comigo, ele disse. - Pobre Paciência.
- Pobre por quê?
- Ela gosta de Coca-Cola.
- O senhor pode comprar aqui, ela disse. Dessa vez com uma tolice proposital.
- Claro.
O garçom veio e ele pediu um vinho Sancerre. - Está bom para a senhora?
- Conheço pouco sobre vinhos, ela disse.
- Pensei que todo francês...
- Deixamos esse assunto para nossos maridos, ela disse. Por sua vez ele sentiu uma estranha tristeza.
O sofá agora era compartilhado por um marido assim como por uma esposa, e por um instante o sole meuniére dava-lhes a desculpa para não conversarem. Mas o silêncio não era uma fuga verdadeira. Se a mulher não tivesse encontrado coragem para falar, os dois fantasmas teriam se plantado no silêncio firmemente.
- O senhor tem filhos? ela perguntou.
- Não, a senhora tem?
- Não.
- O senhor se arrepende?
- Acho que alguém sempre se arrepende em não ter feito algo, ela disse.
- Ao menos, sinto feliz em ter ido ao parque Monceau hoje.
- Eu também.
O silêncio a seguir foi um silêncio agradável: os dois fantasmas foram embora e os deixaram em paz. Num determinado momento, seus dedos se tocaram no açucareiro (haviam pedido morango). Nenhum dos dois tinha vontade de mais pergunta, pareciam conhecer um ao outro, mais do que qualquer outra pessoa. Era como um casamento feliz; a etapa das descobertas haviam acabado, passaram pela fase dos ciúmes e agora estavam tranqüilos na meia idade. Os únicos inimigos eram o tempo e a morte, e o café era como um alerta à velhice. Depois disso era preciso deter a tristeza com conhaque, embora sem sucesso. Era como se tivessem experimentado uma vida em que se mede o tempo como a da borboleta: em horas
- Parece um agente funerário, ele comentou sobre o maître que passou
- Verdade, ela disse. Então ele pagou a conta e saíram. Era uma agonia terrível, eles eram muito delicados para agüentar muito tempo. Ele perguntou:
- Posso levá-la em casa?
- É melhor não. De fato não. O senhor mora tão perto.
- Poderíamos tomar outro aperitivo no terraço? Ele sugeriu com o coração meio triste.
- Não nos ajudaria em nada, ela disse. A noite estava perfeita. Tu es vraiment gentil. Ela percebeu bem tarde que havia usado "tu". Ela contava que o francês dele fosse ruim o suficiente para não perceber o deslize. Eles não trocaram endereço ou telefone, nenhum deles atreveram a sugerir isso: a oportunidade havia chegado muito tarde na vida de ambos. Ele parou um táxi para ela que por sua vez, foi embora através do arco iluminado, e ele seguiu lentamente para casa pela rua Jouffroy. O que é covardia para um jovem é sabedoria para os mais velhos, da mesma maneira alguém pode envergonhar-se de sabedoria.
Marie-Claire caminhou através da porta automática e pensou, como sempre fazia, nos aeroportos e saídas de emergência. No sexto andar se conduziu para dentro do apartamento. Uma pintura abstrata em um tom cruel de escarlate e amarelo ficava de frente à entrada e recebeu-a como uma estranha. Ela foi diretamente para seu aposento e o mais devagar possível, trancou a porta e sentou-se em sua cama de solteira. Através da parede podia ouvir a voz e o riso de seu marido. Imaginou quem estaria com ele aquela noite. – Toni ou François. François tinha pintado o quadro abstrato e Toni, que dançava balé, sempre alegava, principalmente diante de estranhos, ter posado para o falo de pedra de olhos pintado, que tinha um lugar de honra na sala de estar. Ela começou a se despir. Enquanto a voz da porta ao lado fazia suas peripécias, imagens do banco no parque Monceau e do carrinho de chucrute na Brasserie Lorraine apoderou-se dela. Se seu marido a tivesse ouvido entrar rapidamente começaria a agir: excitava-o saber que ela era uma testemunha. A voz dizia: "Pierre, Pierre", reprovadoramente. Pierre era um nome novo para ela. Ela abriu os dedos sobre a toalha da mesa para tirar os anéis e pensou no açucareiro para os morangos, mas ao som de gritarias e risinhos à porta ao lado o açucareiro se transformou no falo com olhos pintados. Ela colocou rolhinhas de cera no ouvido, fechou os olhos e pensou como as coisas seriam diferentes se 15 anos atrás tivesse sentado no banco do parque Monceau observando um homem matando um pombo piedosamente.
- Sinto perfume de mulher em você, Patience Greaves disse com satisfação, encostando-se em dois travesseiros. O travesseiro de cima estava furado com marcas de queimado de cigarro.
- Oh, não pode ser! - É sua imaginação querida.
- Você disse que estaria em casa às 10 horas.
- São 10:20 agora.
- Você estava na Rua Douai, não estava, em um desses bares procurando por uma fille.
- Sentei-me no Parque Monceau e depois jantei na Brasserie Lorraine. Posso-lhe dar seu remédio?
- Você quer que eu durma, assim não preciso ficar na expectativa de nada, não é mesmo? É isso, agora você já está muito velho para fazer duas vezes.
Com a água da carafe que estava sobre a mesa entre as duas camas de solteiro, ele misturou o remédio. Qualquer coisa que dissesse não estaria certo, quando Paciência estava de mal humor. Pobre Paciência, ele pensou segurando o remédio em direção ao rosto coroado com cachos vermelhos. Como ela tem saudade da América. Ela jamais acreditara que aqui, Coca Cola tem o mesmo gosto. Felizmente, essa não seria uma de suas piores noites, pois ela tomou o remédio sem reclamar e enquanto se sentava ao lado dela, lembrava-se do momento fora da brasserie e, por deslize, a certeza de que havia sido chamado de "tu".
- O que esta pensando? Paciência perguntou. - Você ainda está na Rua Douai?
- Estava só pensando que as coisas poderiam ter sido diferentes, ele disse.
Essa foi a maior reclamação que ele se tinha permitido fazer a respeito de sua condição de vida.

5 comentários:

Anônimo disse...

muito legal! adorei!
lisa

Anônimo disse...

Tb adorei, mas a imagem que foi colocada está bem em cima do título do conto ...

*** kisses ***

Anônimo disse...

Muito boa a traducao.
Demonstra cuidado e atencao 'a linguagem.
Congratulations!

Anônimo disse...

Janilza, gostei muito da sua tradução. A escolha do titulo, transmite sensibilidade, assim como o texto e a filosifia nela envolvida. Como conversamos antes, você tem muito chão pela frente.

Anônimo disse...

The best. Well Done